Em 2011 escrevi o artigo “A Empresa Glocal”, visto que na época grupos brasileiros do setor proteico animal expandiam suas operações para vários países do mundo. Este movimento foi liderado então por empresas do setor bovino que, ao mesmo tempo em que estabelecem operações nos principais centros mundiais de carne bovina, diversificam suas ações empresariais para incluir aves e suínos.
A lógica de estar presente em todas as principais carnes é fácil de entender examinando-se os dados de 1965 a 2020, onde se verifica que a carne bovina é superada em produção pela carne porcina entre 1975-80 e pela carne de aves entre 1990-95.
As projeções não são diferentes, mostrando que a carne bovina nos próximos anos terá um crescimento anual de 0,9% a 1,2%.
Consolidando esses dados num gráfico verificamos que a carne bovina, que liderou o consumo mundial até meados da década de 1970, vai inexoravelmente perdendo participação entre as carnes mais consumidas, devendo a partir de 2030 representar ≤ 20% do total.
A espécie bovina usa 15.977[i] litros de água por kg de carne e 18 a 48 meses para alcançar peso de abate dificilmente poderá competir com as espécies mais eficientes, mormente aves (1,4 a 1,6kg IC, 4,335 litros de água e de 36 a 38 dias para alcançar peso de abate) e aqüicultura.
Significa então que a carne bovina está condenada ao desaparecimento. Evidentemente que não, mas fora dos países nos quais encontram os rebanhos no quintal de casa, a carne bovina se tornará item de luxo. Nas próximas décadas, assegure-se de ter uma garantia bancária ou cartão de crédito platino antes de pedir um “entrecôte”, “bife de chorizo”, “NY strip”, “filet” ou “picanha”. E ficaremos felicíssimos com processados de carne bovina, caros, mas acessíveis.
Devemos também considerar que na população mundial há perto de um bilhão de pessoas cujas rendas médias permitem que alimentação represente menos de 20% do orçamento de gastos domésticos. E esse “top billion” pode se permitir de comer o que desejarem, onde preço é uma consideração menor ou inexistente.
E nesse futuro, gado a campo só será visto em documentários do History Channel.
É evidente que os grandes grupos de carne bovina teriam que estender sua ação às proteínas de ciclo curto, como aves e suínos. Se assim não fizessem teriam seu universo de ação empresarial restrito a uma espécie de mercado progressivamente limitado.
Acredito que aí reside uma das motivações para que grupos com histórico de pecuária bovina e produção de carne vermelha ampliem sua atividade para incluir as “carnes do futuro” num primeiro momento e num segundo “as proteínas animais do futuro”, agregando às aves e suínos, ovos, pescados de aquicultura e lácteos.
Esses mesmos grupos também agitaram o mercado com a aquisição de várias empresas no mundo, numa expansão de rapidez surpreendente. Já havia grupos pecuaristas brasileiros com tradição de produção em outros países, seja nos vizinhos do MERCOSUL, seja na Austrália, mas a simultaneidade de se tornarem multiespécies e marcarem presença nos mais importantes mercados mundiais surpreenderam os principais atores mundiais do segmento proteico animal.
- Os principais grupos brasileiros de aves e suínos, com uma histórica presença no comércio internacional, seguiram o exemplo com internacionalização de suas operações de distribuição em mercados chaves e de produção em países estratégicos.
- Qual a motivação deste processo de globalização de operações? Acho que esse processo decorre de alguns fatores:
- a) dieta humana migra para uma maior ingestão de produtos de origem animal na medida em que a renda se expande, fato marcante principalmente nos Países em Desenvolvimento;
- b) produtos de origem animal exigem muito mais recursos naturais que os produtos de origem vegetal e muitos desses mercados em expansão dos Países em Desenvolvimento não dispõem dos recursos de terra arável, condições climáticas favoráveis, fotossíntese e água.
- c) água é o elemento decisivo na medida em que produtos de origem animal requerem de três a quatro vezes mais água do que os de origem vegetal;
- d) Em exportações de carnes o Brasil é a principal potência mundial, com boas perspectivas futuras. Entretanto, o Brasil é uma potência do agronegócio situada num país que não conta internacionalmente, com baixo poder de retaliação e, consequentemente, de negociação internacional.
Diante desta realidade e das perspectivas, buscar globalizar suas operações faz todo o sentido para as principais empresas brasileiras do setor de carnes. O exemplo de dois grupos de origem na carne bovina já foi seguido por outros grupos relevantes que atuam no setor das demais carnes.
O modelo exportador não é mais suficiente para que uma empresa pretenda ter ação global e se esta não globalizar suas ações deverá se contentar com a condição de empresa internacional, produzindo em um país e enviando seus produtos para países do mundo.
A sustentabilidade de tal empresa poderá ceder diante de protecionismo, episódios sanitários, deficiências de infraestrutura, carga fiscal e burocrática sufocantes, câmbio manipulado, ataques de populismo tão ao gosto recidivista latino-americano, para enumerar uns poucos dos muitos riscos.
Uma empresa só se torna global se estiver presente pelo menos entre os principais players mundiais. Há 204 países e territórios que figuram nas estatísticas da FAOSTAT que habitualmente uso em meus estudos. Seria então esta a proposição de uma tarefa hercúlea? Não na medida em que o segmento de carnes é extremamente concentrado, sendo habitual que quinze países, distintos segundo as espécies, concentrem ≥75% da produção, importação, exportação e ≥50% do consumo de carnes, conforme podemos apreciar no quadro a seguir.
Não significa dizer que a empresa tenha que estar presente em todos os 15 países, mas sim que sua estratégia deve contemplá-los de forma a que possa produzir ou processar em alguns deles, importar e distribuir em outros, ter plataformas exportadoras naqueles onde for conveniente e construir uma presença junto aos principais mercados consumidores.
Tenho afirmado que uma empresa global tem que necessariamente ser empresa local nos 15 países que representem >50% do total mundial. O gráficos de Pareto ao final deste artigo elencam os 15 principais países em produção, exportações, importações e consumo das três carnes que abrangem mais de 90% do total mundial. Se as empresas globais não estiverem como atores nesses mercados passarão a ser meras empresas internacionais, produzindo aqui e ali para vender ali, o que fragiliza sua sustentabilidade a largo prazo.
Há convergências de players nas principais espécies e em seus segmentos, o que facilitará a construção da estratégia para que a presença da empresa seja global. Para que seja global a empresa tem que se tornar local. É essencial que a empresa global participe da realidade de cada mercado local onde atuar, de forma comprometida com as variabilidades de cada mercado local, seus hábitos, costumes e peculiaridades.
A ação global da empresa permitirá que ela dilua os riscos e as oscilações de cada um dos mercados onde atuar, tornando-a localmente mais forte que seus competidores e usando essas mesmas variabilidades locais para melhor competir internacionalmente. A empresa “glocal” prevalecerá sobre a empresa internacional e conviverá com seus pares locais.
Não há mais espaço para o modelo Companhia das Índias, nem para o modelo internacional, onde me contento a partir da competitividade que usufruo em certo país para exportar para inúmeros países do mundo. Pretender ser global a partir de uma única base nacional é menos sustentável do que construir essa globalidade a partir do somatório de eficiências locais, que é o que preconizo para a construção do modelo de empresa “glocal”.
Há vários exemplos de empresas glocais, e para ficar na zona de conforto citaria as grandes glocais de grãos. O Brasil é um dos três maiores produtores de grãos do mundo e se verificarmos as cinco maiores empresas que atuam no país nesse segmento veremos que nenhuma delas é brasileira nata. Significa então que estas empresas não estariam comprometidas e engajadas com esse segmento no Brasil? Acho que até cegos bem-intencionados ou pessoas de excelente visão cegadas por ideologia conseguem ver que são tão locais quanto as aqui nascidas.
As duas empresas originárias do segmento bovino, nascidas no Brasil, possuem operações no Brasil, Argentina, Austrália, EUA, Uruguai, Paraguai, Chile, México, China, Rússia e na União Européia, aos quais se agregam centros de distribuição no Egito, Argélia, Congo, R.D. do Congo, Angola, Taiwan, Coréia do Sul e Japão e sem contar os escritórios comerciais em dezenas de países. Tornaram-se “glocais”, destino que terá que ser seguido pelo grupo resultante da fusão dos dois maiores produtores e processadores de alimentos proteico-animais, sem o que ficará restrita a uma posição de empresa internacional.
A terceira empresa glocalizou-se adquirindo estruturas de distribuição e fabricação em Oriente Médio, América do Sul e Eurásia e estabeleceu operações produtivas na Arábia Saudita, EAU e na Turquia. Esta última é um perfeito exemplo dos benefícios da “glocalização”.
No Balanço de Carnes de Aves da Turquia pode-se observar que passam a dar maior ênfase à exportação de carnes de aves a partir de 2010, ainda que com oscilações.
Em 2017, a One Foods, (subsidiária da BRF dedicada ao mercado halal) compra a empresa turca Banvit, levando consigo a experiência de exportações das empresas brasileiras de carnes, que consideram a presença nos mercados internacionais como essencial. Os reflexos se traduzem no quadro a seguir:
A Turquia torna-se na média de 2022-20 o quinto maior exportador mundial de carnes de aves e as projeções existentes indicam avanços de expressão até 2032. Por outro lado, a One Foods seguramente se beneficiou com sua presença local, aprimorando seus conhecimentos sobre a produção desse país estrategicamente localizado e o mercado halal.
Esses grupos diversificam suas ações para se tornarem empresas de alimentos glocais, e suas presenças locais aportam ao grupo global a tecnologia, soluções, inventividade, criatividade, experiência e exemplos de êxito local, intercambiáveis e adaptáveis a favor do grupo global. Aí reside a força da empresa “glocal” e da “glocalidade”.
A presença local pode ser alcançada através da aquisição de empresas existentes, investimentos em projetos a partir do zero e joint-ventures com grupos locais. A existência desses grupos “glocais” não significa que os as empresas locais estão condenadas, pois o yin e yang da gestão empresarial moderna implicam em cooperar e competir, naquilo que em artigos e conferências chamei de “caçar em bando e defender-se em bando”.
A “glocalidade” é garantia de êxito e sobrevivência das empresas “glocais”? Costumo dizer que quem busca garantia deve comprar um carro ou um eletrodoméstico produzido por um grupo glocal. Andam oferecendo garantias de 3 a 5 anos ou até a próxima Copa, quando esperamos que a seleção brasileira volte a jogar futebol. Não há garantias de êxito no mundo empresarial, mas há fórmulas de minimizar os riscos e maximizar as probabilidades de sobrevivência:
- a. ter estratégia para os próximos dez anos, sem descurar de buscar resultados no ano atual;
- b. entender que o objetivo de uma organização é antes de tudo sobreviver;
- c. saber que os logros e feitos que nos trouxeram até hoje não são garantia de êxitos amanhã. Portanto, permeabilidade a novas ideias, a novos conceitos e ao “sei que não sei”;
- d. nada substitui administração eficiente, decisões baseadas em fatos e dados, PDCA, gente motivada e engajada;
- e. evitar o Complexo de Luis XIV;
- f. inovação, atualização e alianças com elos da cadeia. Não dá mais para brigar sozinho. Há que ter aliados na trincheira.
- Poderíamos listar outras fórmulas de sucesso, mas com estas, trabalho, visão, estratégia, controle e permeabilidade a ideias devem bastar.
- Finalizo com gráficos de Pareto de produção, importação, exportação e consumo das três principais carnes, onde estão registrados os quinze principais países em cada um desses segmentos.
- E recordem-se que “as coisas mudam”, razão pela qual cenários quantificados sobre os próximos dez anos são essenciais num planejamento estratégico.
- Cresçam e glocalizem-se. E glocalizem-se para crescer.
- [1] Elaborada por ODConsulting com dados da FAOSTAT. C:\Users\Osler\Dropbox\A Documents\A Documents\Dados\aMundo\Balanço Cárnico\Produção Mundial de Carnes por espécies 1965 a 2022 (1).xlsx
- [1] Elaborada por ODConsulting com dados da FAOSTAT e OECD-FAO Agricultural Outlook 2023-2032. Os dados de 2022 tem como fonte FAO. 2024. Food Outlook – Biannual report on global food markets. Food Outlook, June 2024. Rome. https://doi.org/10.4060/cd1158en. Projeções da ODConsulting usaram os dados de 2022, 2023 (preliminar) e 2024 (estimado) desta última fonte. C:\Users\User\Dropbox\A Documents\A Documents\Dados\aMundo\Balanço Cárnico\Produção Mundial de Carnes por espécies 1965 a 2022 final.xlsx
- [1] Idem # ii
- [1] Fonte: Adaptado de Hoekstra, 2003. March 2003, Water for People, Water for Life – UN World Water Development Report (WWDR), pag 258
- [1] Elaborada por ODConsulting com dados da FAOSTAT e OECD-FAO Agricultural Outlook 2023-2032 D:\A Documents\2032\Meats\Projections\Meats ABC 2022.xlsx
- [1] E:\A Documents\2032\Countries\Asia\Turkey Poultry Balance 1990 to 2032.xlsx
- [1] Elaborada por ODConsulting com dados da FAOSTAT e OECD-FAO Agricultural Outlook 2023-2032. E:\A Documents\2032\Meats\Projections\Beef and Veal ABC média 2022.xlsx
- [1] Idem vii E:\A Documents\2032\Meats\Projections\POULTRY ABC 2022.xlsx
Autor: Osler Desouzart
E-mail: osler@odconsulting.com.br