Há 101 anos o vírus da Peste Suína Africana (PSA) passou a circular no mundo, entretanto desde 2007 a doença altamente contagiosa em suídeos domésticos e asselvajados se disseminou com maior rapidez nos continentes africano, asiático, europeu, oceânico e americano, com notificações em mais de 50 países. Mas o problema secular pode estar com os dias contados. Um consórcio internacional promete apresentar uma vacina segura e eficaz contra PSA em outubro de 2023.
Conforme o presidente da Sociedade Europeia de Virologia Veterinária e diretor do laboratório de referência para a Peste Suína Africana da Organização Mundial para Saúde Animal (OIE) e que integra o consórcio, José Manuel Sánchez-Vizcaíno, que também é professor doutor pela Universidade Complutense de Madrid, na Espanha, a situação atual global da PSA é a pior desde o primeiro relato da doença no Quênia, em 1921. “Com casos em cinco continentes, a PSA se tornou a maior ameaça da indústria suína global, por isso a introdução de carne ou produtos suínos contaminantes é hoje o risco global mais importante para evitar a primeira entrada da doença em países livres”, enfatizou José Manuel durante sua palestra no 26º Congresso do IPVS2022, evento realizado em junho, na cidade do Rio de Janeiro, RJ.
O vírus da PSA deixou a África três vezes, sendo a primeira em 1957 quando acometeu o rebanho suíno de Portugal, país que apresentou novos casos em 1960, década em que a doença se espalhou rapidamente, com notificações na Espanha (1961), França (1967), Cuba (1971/1980), Brasil (1978), Malta (1978), República Dominicana (1978), Haiti (1979), Bélgica (1985) e Holanda (1986). Mas, segundo José Manuel, nada comparado com a terceira onda da PSA fora do continente africano. “Um vírus de alta virulência genótipo II deixou a Costa Leste da África em abril de 2007 para desembarcar no Porto de Poty na Geórgia, contaminando um grupo de animais. A partir daí o vírus se espalhou para a Armênia e a Rússia, se disseminando para a Europa em 2014, Ásia em 2018 e América em 2022, em um cenário até então nunca observado antes”, ressaltou o especialista espanhol.
Panorama na África
Conforme José Manuel, a situação atual da PSA na África pode ser dividida em dois cenários epidemiológicos distintos, ambos endêmicos da doença. A região Oeste onde a PSA se apresenta principalmente em animais domésticos com focos em quintais e sítios familiares e a parte Leste onde os 24 genótipos da PSA descritos até o momento estão presentes e circulando, situação em que o ciclo silvestre e doméstico coexistem.
São vetores transmissores ou reservatórios do vírus os porcos selvagens (Phacochoerus africanus e porcos de Bush), os carrapatos do gênero Ornithodoros ssp (O. mubata, O. porcinus domesticus e O. porcinus porcinus) e os suínos domésticos.
Segundo o docente da Universidade Complutense de Madrid, o cenário mais complicado de controlar a PSA é em animais selvagens, porque eles atuam como portadores crônicos com vírus muito baixo (10to2), porém o O. mubata pode amplificar o vírus de 10to2 a 10to7 e infectar tanto suínos domésticos como selvagens. “Nestes casos o controle e a erradicação são quase impossíveis para a proteção da vida selvagem até que uma vacina segura e eficaz possa quebrar esse ciclo silvestre”, salienta José Manuel.
Cenário na Europa
O primeiro caso de PSA notificado em solo europeu foi em 2007 na Geórgia. Desde então outros 19 países foram infectados até o momento: Azerbaijão (2007), Rússia (2012), Ucrânia (2013), Bielorrússia (2013), Lituânia (2014), Polônia (2014), Estônia (2014), Letônia (2014), Moldávia (2016), Romênia (2017), República Checa (2017), Bulgária (2018), Hungria (2018), Bélgica (2018), Eslováquia (2019), Sérvia (2019), Grécia (2020), Alemanha (2020) e a última notificação foi em 04 de março na Itália. “Destes 20 países afetados apenas na República Checa e na Bélgica a doença foi erradicada. A infecção da PSA nesses países estava afetando apenas o javali”, expôs o presidente da Sociedade Europeia de Virologia Veterinária.
De acordo com o especialista espanhol, no continente europeu são observados dois cenários epidemiológicos diferentes. Na região Leste, em que a maioria dos surtos relatados são em suínos domésticos, e na região Oeste, em que a grande incidência de casos notificados é em javalis, 64% das ocorrências são na área de floresta natural, 20% na área agroflorestal e 12,4% em área agro urbana. “Essa distribuição está relacionada com a baixa biossegurança e a localização das granjas, com algumas delas instaladas dentro ou próximas de áreas florestais”, pontua José Manuel.
Situação na Ásia
No continente asiático atualmente 17 dos 28 países possuem registro da PSA, com o vírus descrito pela primeira vez na China em 2018. Tanto o genótipo II de alta virulência da PSA quanto o genótipo I atenuado estão circulando no país chinês, bem como a vacina ilegal produzida na China para os genótipos II e I. “Esta situação criou implicações epidemiológicas em escala mundial, devido a circulação de grande quantidade de produtos e de carne suína contaminada”, relembrou José Manuel.
De acordo com ele, os casos do vírus atenuado da PSA podem criar grandes dificuldades para a detecção precoce do vírus nos animais porque os sinais clínicos e as lesões são muito diferentes das infecções de alta virulência. “Os casos clínicos do vírus atenuado induzem a um período de incubação mais prolongado e formas crônicas, caracterizadas por inflamação das articulações, nas patas traseiras e lesões cutâneas”, pontua José Manuel.
Conforme o profissional, em 16 países asiáticos circula apenas a PSA de genótipos II de alta virulência, o que ele considera um fator de risco, assim como o potencial de transmissão da doença do javali para outras áreas de produção animal. “Em geral, a população de animais selvagens não está correlacionada com o número de casos declarados, exceto na Coreia do Sul. Na China, apenas nove casos em javalis foram relatados. Este é um fator que merece atenção, porque em geral o javali desempenha um papel importante na transmissão da PSA”, declarou.
Outro risco apontado pelo especialista espanhol são os possíveis problemas da PSA atenuada circulando fora do território chinês, o que implica na detecção precoce da doença. José Manuel reforça que o governo chinês firmou várias parcerias para troca de informações e pesquisas conjuntas com países da América Latina, entre eles o Brasil, além da região do Caribe.
Vacina contra PSA
O professor doutor pela Universidade Complutense de Madrid destaca que desde o surgimento da PSA já teve diversas tentativas de criar uma vacina contra o vírus, porém, até o momento, sem sucesso.
Na década de 1960, o pesquisador português Manso Ribeiro e, mais tarde, o pesquisador espanhol Sanchez Botija desenvolveram vacinas atenuadas por diferentes passagens do vírus PSA em leucócitos suínos, as quais demonstraram proteção contra cepas virais circulantes, mas também causaram efeitos colaterais e o desenvolvimento de formas crônicas da doença, afetando a pele dos animais e produzindo lesões nas articulações, principalmente nas patas traseiras. “O equilíbrio entre eficácia e segurança não parecia fácil de alcançar. Desde então, várias estratégias têm sido utilizadas, obtendo-se como resultados mais promissores os protótipos vacinais com atenuação gerados naturalmente, por infecção natural em diferentes animais, ou por sucessivas passagens do vírus em leucócitos suínos ou ainda em adaptação a outras células. Contudo, as vacinas inativadas, de subunidades com diferentes proteínas, e as vacinas de DNA nunca geraram proteção significativa”, evidenciou José Manuel.
De acordo com o diretor do laboratório de referência para PSA da OIE, a enorme complexidade do vírus com mais de 170 genes, a maioria deles ainda pouco conhecidos, a falta de anticorpos neutralizantes, pelo menos em quantidade significativa, dificultava a obtenção de um bom equilíbrio entre proteção e segurança.
No entanto, os avanços na biologia molecular do vírus e o conhecimento de alguns genes relacionados à virulência permitiram avanços significativos e grande esperança para a produção de vacinas seguras. “Vários grupos de pesquisa estão trabalhando na Europa, Estados Unidos e Ásia no desenvolvimento de uma vacina contra PSA para suínos domésticos e javalis, com resultados promissores, entre eles está o projeto Eu Vacdiva”, adianta José Manuel.
Integram o consórcio Vacdiva 13 laboratórios de pesquisa e epidemiologistas parceiros da União Europeia com alta experiência em PSA e vida selvagem, duas importantes empresas do setor (MSD e Ingenasa), além da China, Rússia e Quênia. As pesquisas iniciaram em 2019 e têm previsão de conclusão em outubro de 2023.
A iniciativa objetiva obter uma vacina segura e eficaz para suínos (por inoculação) e javalis (vacina oral), realizar teste de diagnóstico para distinguir animais vacinados daqueles infectados por PCR ou Elisa (teste sorológico imunoenzimático), planejar estratégias de controle e erradicação da PSA para diferentes cenários epidemiológicos em todo o mundo, além de testar a vacina piloto em ambiente real controlado.
José Manuel detalha que as vacinas candidatas do projeto Vacdiva são baseadas em substâncias naturais atenuadas de PSA, dos genótipos I e II, obtidas de javalis e de suínos que induziram importante proteção cruzada contra diferentes circulantes virais de PSA de alta virulência. “Neste momento estamos avaliando os diferentes protótipos de vacinas em suínos e javalis, realizando vários experimentos in vivo para garantir a segurança e a eficácia da vacina” ressalta.
Os resultados obtidos até agora comprovaram uma eficácia contra genes heterólogos de alta virulência entre 92 a 100% de proteção. “Ter uma vacina segura e eficaz é o principal objetivo do projeto Eu Vacdiva. Os resultados parciais obtidos até agora são muito promissores, porém mais estudos sobre duração da imunidade, segurança em matrizes, animais jovens e proteção cruzada devem ser concluídos”, acentua o especialista espanhol.